top of page

Reserva Cognitiva e Educação.

Atualizado: 18 de fev. de 2024


"A flexibilidade cognitiva é uma habilidade importante para o desenvolvimento da reserva cognitiva, uma vez que permite que os indivíduos se adaptem a novas situações e desafios" (Cabeza et al., 2018)."

Seria possível imaginar que provocações feitas aos alunos na Escola tivessem o poder de afetar progressivamente a saúde cognitiva deles na velhice? Existe alguma probabilidade de que a estimulação cognitiva durante a vida possa proteger o ser humano da senilidade?

Imagine então dois cérebros afetados igualmente pela senescência: atenuação na comunicação sináptica, densidade neuronal reduzida, diminuição acentuada do volume cerebral e da neuroplasticidade. Estes órgãos, pertencem respectivamente a duas senhoras da mesma faixa etária, as Irmãs Mary e Bernadette. Surpreendentemente algo na vida daquelas mulheres fez uma diferença avassaladora. Mary, nascida em 1890, naquele momento aos 101 anos de vida, se mostrava intelectualmente ágil e sua capacidade cognitiva perfeita, enquanto que Bernadette sofria de todas as mazelas da doença de Alzheimer (Snowden, 1997).

Mas, por que a obsolescência biológica não foi igualmente implacável para a irmã Mary? E por que um impacto tão severo na vida de Bernadete?

Que influência da Educação Básica teria na produção de saúde mental na velhice?

Este caso veio a tona através do artigo Aging and Alzheimer's disease: lessons from the Nun Study (1997) que apresentou as descobertas da "Nun Study", conhecido no idioma português como o ”Estudo da Freiras”. O artigo traz achados importantes para o entendimento do envelhecimento saudável. Tratou-se de um estudo epidemiológico de longo prazo conduzido por David A. Snowden, da Universidade de Kentucky, envolvendo 678 freiras católicas norte-americanas, que foram acompanhadas desde 1991 até o momento de sua morte. Foram coletadas informações sobre atividade física, situação sócioeconômica, lazer, hábitos, comportamentos, aspectos mentais, alimentação, vida laboral, saúde física e capacidade cognitiva (Stern, 2019). O “Estudo das Freiras” enumerou fatores que diretamente proporcionaram um envelhecimento saudável do cérebro. As Irmãs Bernadette e Mary foram referências importantes nesse trabalho que contribuiu para o desenvolvimento do conceito de “Reserva Cognitiva”.

O conceito de Reserva Cognitiva foi inicialmente proposto e desenvolvido pelo Dr. Yaakov Stern, professor de neuropsicologia clínica na Columbia University, nos Estados Unidos. Ele conduziu diversas pesquisas na área, demonstrando que as pessoas com maior reserva cognitiva possuem um risco reduzido de desenvolver demência e outras doenças neurodegenerativas.  Uma das publicações mais importantes de Stern sobre o tema é o artigo "Cognitive reserve in ageing and Alzheimer's disease", publicado em 2012 na revista Archives of Neurology. Nesse artigo, Stern apresenta uma revisão dos estudos que apontam a existência da Reserva Cognitiva e discute os possíveis mecanismos que podem explicar essa relação entre Reserva Cognitiva e proteção contra doenças cerebrais. Outra publicação relevante de Stern é o livro "Cognitive Reserve: Theory and Applications", publicado em 2002. Nessa obra, Stern apresenta uma síntese das pesquisas realizadas sobre o assunto até aquele momento, abrangendo diversos aspectos relacionados à reserva cognitiva, como os fatores que a influenciam, as técnicas utilizadas para medi-la e as implicações clínicas do conceito.


Reserva Cognitiva

 

A Reserva Cognitiva refere-se à capacidade do cérebro de manter um desempenho cognitivo saudável, apesar dos danos cerebrais associados ao envelhecimento ou a doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer. Em outras palavras, é a habilidade do cérebro de compensar a perda de células cerebrais ou mudanças estruturais por meio do uso de áreas não afetadas do cérebro ou da adaptação de outras funções cognitivas para executar tarefas específicas. Esse conceito pode ser entendido como um processo sequencial que atinge toda a existência do ser humano. No entanto, é justamente na infância que é consolidada a fundação desse processo. Nosso maquinário cerebral é afetado e afeta nossa potencia de agir no mundo. Dessa maneira, existem muitas variáveis nesse quebra-cabeça, como o nosso potencial genético, as nossa vivências, o nosso ambiente físico, a qualidade de vida, a nutrição, a atividades físicas (Stern, 2013), o nosso contato com a natureza, relação familiar, amigos e etc. Toda essa massa caótica de variáveis e estímulos deságua, provoca e estimula o nosso Sistema Nervoso, mas, o que acontece no cérebro para que tenhamos Reserva Cognitiva? Será que essa capacidade física do cérebro à adaptação possui um componente comportamental relacionado a uma atitude mais afirmativa diante das frustrações, interdições e perdas que a vida nos impõe? 

A Reserva Cognitiva está ligada a uma ampla estimulação do corpo que promova o prazer aliado ao desenvolvimento cognitivo. Essas atividades podem ser super diversificadas, como atividade física regular, dança, leitura, aprendizado de novas habilidades, participação em jogos, uma nova faculdade, estudo de instrumentos musicais, estudo de novos idiomas, socialização, engajamento em atividades que demandem atenção, desafios, investigações ou resolução de problemas. 

Além disso existem comportamentos que marcam a Reserva Cognitiva, por exemplo, alguns estudos investigam a relação entre Resiliência Cognitiva e Reserva Cognitiva. Resiliência Cognitiva é a capacidade de uma pessoa de lidar com situações adversas, desafios ou mudanças inesperadas usando seus recursos cognitivos para se adaptar e superar esses obstáculos. É uma capacidade que envolve a flexibilidade mental, a capacidade de aprender com a experiência, a tolerância à incerteza, a capacidade de manter uma visão positiva do futuro e ao mesmo tempo recuperar-se rapidamente de situações estressantes, adaptando-se as mudanças (Stern, 2019).

A Reserva Cognitiva pode ser estimula e até apreendida ao longo da vida, corroborando para ajudar na proteção cerebral apesar das perdas físicas no tecido e redes neurais que estão associados ao envelhecimento e a doenças neurodegenerativas.


O que a Escola poderia contribuir para a Reserva Cognitiva?


"A educação deve ser um processo contínuo de aprendizagem ao longo da vida" Simón Rodriguez - 1830.

As experiências na infância, inclusive na Educação Infantil, podem afetar diretamente no grau de desenvolvimento da Reserva Cognitiva. Hackman e Farah conduziram um estudo, publicado em 2009 na revista "Socioeconomic status and the developing brain", onde foi examinada a relação entre a qualidade do ambiente familiar e a Reserva Cognitiva em crianças em idade pré-escolar. Os resultados indicaram que as crianças que cresceram em ambientes familiares mais estimulantes apresentaram maiores níveis de Reserva Cognitiva.

Um fator relevante para a qualidade ambiental do aluno é, sem sombra de dúvidas, o grau de tranquilidade e segurança socioeconômica. Ambientes escolares que fomentam a competição para atender a altos padrões de rendimento, que mantém avaliações frequentes e rigorosas podem tornar a vida dos alunos extremamente estressante. A sobrecarga curricular e o enfoque conteudista, em detrimento de uma pedagogia holística (Almeida, 2008) podem contribuir para o aumento do estresse. Existem estudos que demonstram uma relação inversa entre o estresse crônico e a capacidade cognitiva. Nesse caso, ambientes opressivos podem impactar ainda mais na diminuição da Reserva Cognitiva, levando a mudanças no cérebro, como a diminuição da densidade de matéria cinzenta em áreas associadas à cognição, memória e emoções (McEwen, 2013). Bandoli, e colaboradores em 2017, no estudo publicado no periódico "Proceedings of the National Academy of Sciences", a equipe concluiu que crianças que haviam sido expostas a altos níveis de estresse crônico apresentaram uma redução no tamanho do hipocampo, mesmo após o controle de fatores como idade, sexo e renda familiar(Bandoli, 2017).

É importante lembrar que durante a infância há uma explosão estruturante das funções cerebrais. Devido a força da neuroplasticidade, nesse período, o aprendizado, a memória, os sentidos, as emoções são construídas de uma maneira rizomática em camadas interconectadas que integram e dão sentido às vivências percebidas pelo corpo humano. Nesse período, o cérebro passa por uma revolução bioquímica que favorece a fixação de formas de existir, maneiras de perceber o que nos acontece através da construção de redes neurais em resposta aos estímulos apresentados no cotidiano. Por esse motivo o ambiente, a quantidade e qualidade dos estímulos marcam, de forma indelével, o indivíduo, construindo comportamentos diante das situações de vida.  A plasticidade cerebral é maior nesse período e portanto esse é um momento crucial para o aprendizado e aquisição de habilidades (Doidge, p.73 e p.206, 2012). Todos esses fatores atenuam-se após a infância, logo, a Escola é fundamental que hajam vivências que estimulem a abertura de habilidades diversificadas, que incluam a experiencia integra do corpo. 

Além dessa diversificação, o educador poderia pensar em provocações sequenciais que resultassem em saltos de novas Zonas de Desenvolvimento Proximal (Shabani, 2010). Dessa forma a criança estaria sempre desafiada à abertura de visão de caminhos criativos a frente, que poderiam gerar uma abertura existencial. O Fomento ao vislumbre de novos caminhos e horizontes, como “janelas de desenvolvimento” donde o professor atue como um guia do processo de cognição (FINO, 2001).

Comportamentos que favoreçam à ampliação das possibilidade de ser no mundo terminam porcontribuir ao fortalecimento dessa pessoa a partir da expressão de sua criatividade, espontaneidade e flexibilidade existencial.  A construção de uma capacidade criativa é extremamente útil quando nos deparamos com as mudanças produzidas pela vida e essa faculdade termina por trazer mais segurança na medida que amplia a nossa habilidade de adaptação e criação de realidade de forma integra e prazerosa.

O professor tem um papel relevante nesse processo, tanto na geração de ambiência para o desenvolvimento da Reserva Cognitiva, quanto na provocação dessa flexibilidade existencial aos seus alunos.


Ideias para enriquecer a abordagens pedagógicas à Reserva Cognitiva.


"A verdadeira educação não é apenas sobre transmitir informações, mas sobre ajudar os alunos a descobrir quem são e a encontrar seu lugar no mundo. Devemos nutrir o potencial único de cada indivíduo, para que possam se tornar os melhores que podem ser. "Rolando Toro.

 

O professor da UFRJ, Marcus Vinícius Machado de Almeida, em seu trabalho “A selvagem dança do corpo” (2006) explicita a capacidade inata de moldagem do corpo a partir do modo de vida, estímulos ambientais e vivências do ser humano. Almeida toma como referência a construção do corpo de crianças selvagens, que adquirem características corporais na adaptação a suas respectivas alcateias ou manadas.  O autor convida ao conceito de Corpo-Artesanal como a possibilidade como consequência a um conjunto de repetições de comportamentos e movimento (Almeida 2006, p.216). Pensando dessa forma e extrapolando para as possibilidades de treinamento cerebral, podemos vislumbrar caminhos e possibilidade para a estimulação do ser humano desde a primeira infância com o objetivo de lograr a Reserva Cognitiva. Abaixo, algumas possíveis estratégias de estimulação:

  • Aprendizagem Investigativa, encorajando os alunos à participação ativa do processo de aprendizagem, por meio da identificação, formulação e resolução de problemas, e da reflexão crítica sobre o conhecimento adquirido" (Coll, 2009), desenvolvendo a capacidade de fazer perguntas significativas e encontrar novas questões à medida que se avança no processo de investigação" (Ramansini, 2022).

  • Fornecer feedback construtivo: Os professores podem fornecer feedback construtivo aos alunos, incentivando-os a refletir sobre seu próprio processo de aprendizado e desenvolvimento cognitivo. Isso pode ajudar os alunos a se tornarem mais conscientes de suas próprias habilidades cognitivas e a se esforçarem para melhorar

  • Práticas como meditação, exercícios de "mindfulnessmindfulness, treinamento cognitivo, terapia cognitivo-comportamental e intervenções psicológicas podem ajudar a resiliência cognitiva, que está também associada a Reserva Cognitiva. Ela é considerada uma habilidade importante para o bem-estar e a qualidade de vida, pois permite que as pessoas enfrentem melhor os desafios e adversidades da vida (Stern, 2019).

  • Criar um ambiente de aprendizado seguro e acolhedor: Os professores podem criar um ambiente de aprendizado seguro e acolhedor, onde os alunos se sintam à vontade para expressar suas ideias e se engajar em discussões. Isso pode ajudar a promover a flexibilidade existencial dos alunos, permitindo que eles se sintam mais confortáveis ​​ao se expor a diferentes ideias e perspectivas. (Stern, 2012)

  • Oferecer experiências de aprendizado diversificadas: Os professores podem expor os alunos a uma variedade de experiências de aprendizado, incluindo leitura, audições, pratica de conjunto com instrumentos musicais, mostra de audiovisual, discussões em grupo, resolução de problemas e projetos criativos. Isso pode ajudar a estimular a cognição dos alunos e desenvolver sua flexibilidade cognitiva.

  • Estimular a curiosidade e a criatividade: Os professores podem incentivar a curiosidade dos alunos e encorajar a expressão criativa por meio de atividades como desenho, música, escrita criativa e debates sobre tópicos interessantes. Fornecendo novos desafios e oportunidades para o desenvolvimento cognitivo. Jogos cognitivos: Jogos que desafiam a memória, a atenção, a resolução de problemas e outras habilidades cognitivas podem ajudar a estimular a reserva cognitiva. Por exemplo, um estudo realizado por Belleville e colaboradores em 2007 mostrou que o treinamento cognitivo pode melhorar a memória episódica em idosos com comprometimento cognitivo leve.(Belleville, 2007).

  • A motivação provocada pelas práticas musicais também podem ser utilizadas como elemento motivador do interesse dos estudantes. As vivências musicais tem o poder de recompensar seus participantes durante a prática instrumental em conjunto e provocar sensações de bem estar e prazer e pode afetar o Sistema Nervoso Autônomo Simático e Parassimpático (Ellis, 2010).

  • Exercícios físicos: Além de melhorar a aptidão física, exercícios aeróbicos também podem melhorar a função cognitiva e aumentar a reserva cognitiva. Um estudo realizado por Erickson e colaboradores em 2011 mostrou que o exercício físico está associado a um aumento no volume de algumas áreas do cérebro, incluindo o hipocampo, que desempenha um papel importante na memória (ÖHMAN, et al, 2014).

  • Aprendizado de línguas: Aprender uma nova língua é uma forma eficaz de estimular a reserva cognitiva, uma vez que envolve a aquisição de novas habilidades linguísticas e o uso intenso da memória e atenção. Um estudo realizado por Alladi e colaboradores em 2013 mostrou que o aprendizado de uma segunda língua pode retardar o início da demência em idosos (Alladi et al,2013).

  • Prática de atividades artísticas: Atividades artísticas, como pintura, desenho, escultura e dança, podem ajudar a estimular a reserva cognitiva, uma vez que envolvem a criatividade, a atenção, a memória e outras habilidades cognitivas. Um estudo realizado por Blumen e colaboradores em 2003 mostrou-se promissor apontando a prática de dança de salão associada a uma redução no risco de demência em idosos (Blumen, 2022).

  • A pedagogia holística pode ampliar as possibilidades de manifestação da identidade do sujeito, já que enfatiza uma abordagem integral do ensino e aprendizagem. Envolvendo uma integração das dimensões físicas, emocionais, mentais e espirituais do ser humano dentro do processo educativo. Nessa área há grandes contribuições de Rudolf Steiner, Maria Montessori, Paulo Freire, Carl Rogers, que podem auxiliar na formatação de atividades e vivências que corroborem para a Reserva Cognitiva. Um estudo publicado em 2019 na revista International Journal of Educational Research and Technology investigou o impacto da pedagogia holística em habilidades cognitivas e acadêmicas de crianças em idade escolar na Nigéria. Os resultados sugeriram que a pedagogia holística pode ter um efeito positivo na melhoria das habilidades cognitivas e acadêmicas das crianças (Miseliunaite, et al, 2022).


Referências:


ALLADI, S.; BAK, T. H.; DUGGIRALA, V.; SURAMPUDI, B.; SHAILAJA, M.; SHUKLA, A. K.; CHAUDHURI, J. R.; KAUL, S.; CHANDRASEKHARAN, A. Bilingualism delays age at onset of dementia, independent of education and immigration status. Neurology, v. 81, n. 22, p. 1938-1944, 2013. DOI: 10.1212/01.wnl.0000436620.33155.a4. Disponível em: https://n.neurology.org/content/81/22/1938 Acessado 30 mar 2023

ALMEIDA, Marcus Vinicius Machado de. A selvagem dança do corpo. 2006. 271p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Fisica, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1604637  https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/398360 Acessado 30 mar 2023

ALMEIDA, Severina Alves de. Tratado da pedagogia do oprimido: holismo e autopoiese promovendo uma pedagogia da alteridade. 2008. Disponível em: http://www.acervo.paulofreire.org:8080/handle/7891/4266  Acessado: 30/03/2023

BANDOLI, G. et al. Childhood adversity, adult stress, and the risk of major depression or generalized anxiety disorder in US soldiers: A test of the stress sensitization hypothesis. Psychological Medicine, v. 47, n. 13, p. 2379-2392, 2017. DOI: https://doi.org/10.1017/S0033291717001064


Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page