Interferência dos Dispositivos Celulares na Educação (parte 1).
- Fernando Nicolau
- 11 de fev. de 2024
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Atualizado: 18 de fev. de 2024
“Imagine seres humanos habitando uma caverna subterrânea […] Estão ali desde a infância, fixados no mesmo lugar, com pescoços e pernas sob grilhões, unicamente capazes de ver à frente […] E as imagens das pessoas que passam ao lado, refletidas na água, e as sombras das outras coisas que se encontram ao redor, tudo isso é entendido como real pelos que lá estão, como se fosse a verdadeira realidade, ao invés de sombras de objetos projetadas por um fogo que arde por detrás deles, na parte superior da caverna." (Platão, p.289, 2016)
Filtros de Percepção Sensorial da Realidade.
No quarto século antes de Cristo, Platão concebeu a famosa "Alegoria da Caverna", na qual é capaz de ilustrar toda a carência e fragilidade da percepção humana sobre a verdadeira natureza das coisas (Platão, p.289-293, 2016). Na narrativa, prisioneiros eram mantidos em estado de ignorância provocado por um severo bloqueio sensorial. Vinte e sete séculos depois de Platão, a busca pela ciência novamente nos remete àquela metáfora. Percebemos apenas sombras? São simplesmente projeções e reflexos o que capturamos de uma verdade inconcebível, imensurável e transcendental? Pois é possível que sim.
Realmente nossos cérebros constroem o que entendemos por realidade a partir da consolidação e interpretação de impulsos elétricos. Matéria prima obtida por sensores biológicos em cada ser vivo que forja a construção de um espectro de leituras particulares da realidade, diferindo conforme a complexidade e diversidade de cada sistema nervoso.
Então, podemos inferir que a natureza das coisas ou a percepção da totalidade sempre estará limitada, qualitativamente e quantitativamente por esse ‘recorte’ tomado como real, frente à infinitas possibilidades da percepção da verdade.
"O desenvolvimento sensorial começa no útero e continua durante toda a vida. A experiência sensorial é essencial para moldar o cérebro e a mente e para a adaptação ao ambiente." (Patel, 2010)
Os neurônios sensoriais podem ser mecanorreceptores, quimiorreceptores, fotorreceptores, termorreceptores, nociceptores, receptores proprioceptivos, auditivos, visuais e olfatórios. E ainda que existam outros neurônios sensoriais a serem descobertos pela ciência (Prescott, 2019), mesmo sim, nossa leitura da realidade sempre estará fisicamente delimitada.
A percepção e modelagem da realidade no cérebro humano é um tema de interesse em diferentes áreas da neurociência. A Teoria da Inferência Ativa proposta pelo neurocientista Karl Friston sugere que o cérebro não apenas reage ao ambiente, mas também o modela ativamente, gerando expectativas a partir de experiências anteriores, comparando-as com informações sensoriais disponíveis. Esse processo de inferência ativa permite ao cérebro reduzir a incerteza e fazer previsões precisas sobre o mundo ao seu redor (Friston, 2010).
"O desenvolvimento sensorial é um processo contínuo que envolve a integração de informações sensoriais de múltiplas fontes. Uma compreensão profunda do desenvolvimento sensorial é essencial para a compreensão da cognição e do comportamento humano." (Stein, 2012)
O processamento cognitivo das informações capturadas do ambiente pelos neurônios sensoriais acontecem e são organizadas em padrões significativos através de processos mentais como atenção, codificação e armazenamento na memória de curto prazo. A informação relevante é então transferida para a memória de longo prazo, onde é consolidada e armazenada para uso posterior (Lent, p.430-433,2011). A consolidação da informação na memória de longo prazo depende de muitos processos e regiões do cérebro, incluindo o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal. Essas regiões trabalham juntas para transformar a informação em memórias duradouras, no entanto, a ‘verdade’ sobre a realidade percebida pode estar ainda mais distante. Isso porque há um risco de concluirmos equivocadamente o que nos acontece influenciados pelas previsões, redes neurais mais frequentadas e memórias anteriores. A complexa rede sináptica cerebral é enriquecida por associações que podem exercer influência e mudar como interpretamos a percepção da realidade enquanto experienciamos algo que nos acontece (Doidge, 2012). Podemos, portanto, sermos influenciados por memórias, interpretações e até mesmo por memórias falsas criadas espontaneamente em nosso próprio sistema nervoso (Loftus & Pickrell, p.720-725, 1995) . Na verdade fatores como o ambiente psicossocial, crenças religiosas, traumas, estados alterados de consciência, substâncias psicoativas (Riba at al.,2006), exposição à realidade virtual (Zhang,2021) e até distorções cognitivas ligadas à alienação psico-sociopolítica resultante das relações de poder e exploração presentes na sociedade (Marx, 2013) podem alterar qualquer interpretação de nossa percepção particular de realidade.
Todo esse raciocínio tem potencial para ampliar nosso entendimento de neurodiversidade ou até de neurodivergência, já que a estruturação de nossa mente depende de tantas variáveis para constituir-se, mas que consequências subjetivas estão sendo sendo forjadas pelas telas dos dispositivos celulares à formação intelectual das próximas gerações, que estão sendo submetidas as nossas crianças pela revolução tecnológica vigente e que mudanças acarretarão na Educação e na pedagogia?
Cotidiano e a Negligência de uma Integração Sensorial.
"O desenvolvimento dos sentidos é crucial para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social de uma criança. Cada sentido é importante para aprender sobre o mundo e se comunicar com ele." (Berger,2003)
Platão defendia que a iluminação era conquistada metaforicamente a partir do acesso ao Mundo das Ideias, possibilidade de libertação simbólica do prisioneiro que saia da caverna e expandia sua percepção através da razão. Na contemporaneidade, estamos vivendo um grave afunilamento das percepções do Mundo Sensível. Em nossa caverna pós-moderna, estamos nos condicionando a ver a ‘grandiosidade de sombras e reflexos’ filtradas por minúsculas telas de nossos celulares. Nas funções de uma orquestra sinfônica, não é raro ver pessoas adultas desatinadas, de forma automática, filmando as apresentações e perdendo grande parte da experiência olhando o concerto musical através de suas minúsculas telas, como se pudessem capturar a grandiosidade sensorial daquele evento.
Permitir que atitudes como essa sejam permitidas no cotidiano de uma criança e ainda sem controle ou limitação de tempo pode gerar consequências sérias. Pensando na necessidade de construção de um cérebro saudável, esse processo passa pela estruturação das redes neurais ligadas à percepção sensorial, mas infelizmente, em qualquer parte do mundo, é comum ver adultos iludidos pelo fascínio provocado pelas inovações tecnológicas que negligenciam a necessidade física dessa integração censorial e de estruturação cerebral da criança. Elas precisam de provocações sensoriais, precisam integrar suas percepções.
A Integração Sensorial é um processo neurológico que permite ao cérebro processar e interpretar as informações sensoriais que recebe do ambiente. Isso significa envolver, coordenar e organizar de informações sensoriais de diferentes sistemas sensoriais, incluindo visão, audição, tato, paladar e olfato (Ayres, 2005).
"A educação muitas vezes nos ensina a separar mente e corpo, razão e emoção, quando na verdade somos seres integrados que precisam abraçar todas as facetas de nossa natureza para viver plenamente." Rolando Toro.
No cotidiano da vida nas cidades, notamos adultos negando às criança experiências importantes para a formação do corpo biológico. Obcecados pelo controle comportamental das crianças, alguns cuidadores, rendem-se ao ‘conforto’ momentâneo provocado pela captura de atenção provocada pelos jogos eletrônicos e liberam o uso dos dispositivos eletrônicos sem nenhum critério ou limitação. Terminam consequentemente por elicitar respostas condicionadas ao apelarem para os dispositivos eletrônicos. Metaforicamente estamos oferecendo ração ao invés de um banquete. A restrição comportamental através de uma tela de um celular nega às crianças não somente a brincadeira, mas as possibilidades naturais de desenvolvimento biológico de sua percepção, afetando a saúde daquele ser como um todo.
Realmente estamos submetendo as nossas crianças aos grilhões dos dispositivos eletrônicos, condicionadas a olhar apenas para frente de suas telas, visualizando a sombra das sombras, em detrimento de toda a complexidade das percepções físicas possíveis. Toda iniciativa, vontade e empolgação natural das crianças vem sendo ceifada pelo uso indiscriminado de dispositivos eletrônicos com o objetivo de inibir comportamentos inadequados ou inconvenientes aos padrões sociais dos adultos. Estamos presenciando sistematicamente no cotidiano urbano o distanciamento das crianças ao exercício lúdico e coletivo do brincar nos parques e junto à natureza.
A simplicidade de um passeio pela floresta, as suas infinitas possibilidades de experiências sensoriais, sensações de temperatura, brisa, olfato, vivências corporais cinestésicas, nuances de todo espectro sonoro e visual. Toda essa vivência é essencial. A vida é composta por essa complexas e extraordinária profundidade e isso se transforma em saúde para ser humano.
Uma minúscula tela lisa, que reduz toda a magnitude da vivência a uma restrita visão bidimensional de poucos centímetros quadrados, em alto contraste de cores e sons estridentes. Notem que os mecanismos de sobrevivência foram moldados durante todo o percurso de evolução de nossa espécie, construído a partir das percepções físicas do nossos sentidos. O Sistema Nervoso Autônomo Simpático, responsável pela reação de “luta, fuga e congelamento” necessita da perfeita estruturação dos sentidos na infância para que o adulto possa se proteger eficientemente. E isso não se refere a apenas situações de perigo, durante a senilidade, perdemos naturalmente circuitos neurais, progressivamente ficamos debilitados e todas as experiências durante a infância geram repertório e redes neurais diversas dependentes da riqueza sensorial que somos submetidos. Logo, dependendo disso, nosso cérebro se torna mais robusto e rico em flexibilidade de circuitos neurais, abundante em reserva cerebral que fará toda a diferença durante a velhice.
Restrição da Estimulação.
"A integração sensorial é uma função neural crítica para o desenvolvimento humano e é fundamental para o desempenho efetivo em todas as atividades da vida diária." (Ayres, 2005)
O sentido da audição, pode ser tomado como referência para explicar o que acontece também nos demais sentidos. A percepção do som para os seres humanos varia fisicamente aos estímulos dentro da faixa de frequência entre sons graves, acima de 16 Hz até o limite dos sons abaixo de 20.000 Hz (Fletcher- Munson, 1933). Essa capacidade de perceber todo esse espectro de frequências e suas pequenas varições de intensidade sonora garantiu à nossa espécie a previsão de perigos potenciais. Porem, como foi explicado anteriormente, essa capacidade foi estruturada a partir de toda uma riqueza sonora existente na Terra que gerou uma especialização de percepções sonoras uteis a nossa sobrevivência. O problema é que os fabricantes de dispositivos eletrônicos não estudaram biologia e se utilizam de sons saturados e normalizados que limitam a emissão sonora às frequência médias, estabilizadas sempre no máximo volume a partir de aparelhos de som cujos amplificadores maximizam uma sonoridade pobre e estridente em detrimento de todas as possibilidades de dinâmica e espectro de som. Não precisamos entrar na engenharia de construção de fones ouvido, métodos de conversão analógico digital, pré-amplificadores, métodos de normalização de áudio, técnicas de masterização, para entender o abismos entre a a experiência natural do com e a toda a limitação sonora que estamos sendo submetidos. Para isso basta entrarmos em uma floresta tropical e permanecermos por uns minutos. Sentiremos rapidamente toda a abundância sensorial inata do ser humano, mas também, infelizmente, teremos consciência de toda a riqueza que estamos perdendo sensorialmente no dia a dia dos centros urbanos ou mergulhados no mundo bidimensional dos dispositivos móveis.
Referências.
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